Primeiro devemos determinar as relações entre a visão de
João a respeito dos "mil anos" e o contexto imediato do Apocalipse,
ou seja os capítulos 19 e 21, antes que possamos compreender o significado do
capítulo 20. Também devemos averiguar que conexões possíveis existem entre
Apocalipse 20 e as profecias do Antigo Testamento. Devem responder-se estas
perguntas de exegese antes de estabelecer qualquer opinião dogmática de Apocalipse
20, uma das passagens mais problemáticas que há na Bíblia. O enfoque contextual
deve preceder sempre o dogmático ao fazer uma exegese responsável das Sagradas
Escrituras.
O Contexto de
Apocalipse 19
"Então, vi descer do céu um anjo; tinha na mão a chave
do abismo e uma grande corrente. Ele segurou o dragão, a antiga serpente, que é
o diabo, Satanás, e o prendeu por mil anos; lançou-o no abismo, fechou-o e pôs
selo sobre ele, para que não mais enganasse as nações até se completarem os mil
anos. Depois disto, é necessário que ele seja solto pouco tempo" (Apoc.
20:1-3).
O termo "milénio" significa literalmente "mil
anos", e o período dos anos a que se alude como o milénio só se menciona
em Apocalipse 20. A relação desta passagem com a visão precedente de Apocalipse
19:11-21 é clara e amplamente reconhecida pelos eruditos. A visão do Armagedom
de Apocalipse 19 constitui tanto a expansão final de Apocalipse 16 a 18 como a
introdução a Apocalipse 20. Dessa maneira, Apocalipse 19 forma uma parte
essencial da visão do milénio.
Os inimigos de Cristo do tempo do fim são a besta, os reis
da terra com seus exércitos e o falso profeta (Apoc. 19:19, 20). Na volta de
Cristo como o Rei e Juiz de toda a terra, "Os dois [a besta e o falso
profeta] foram lançados vivos dentro do lago de fogo que arde com enxofre"
(v. 20). E "outros", ao parecer "os reis da terra e seus
exércitos" (v. 19), foram mortos pelo impacto da vinda de Cristo (v. 21).
Apocalipse 20 revela que Satanás, o génio criador de toda rebelião será
"preso", encerrado e selado por um anjo de Cristo (vs. 1-3). Depois
do milénio será "lançado no lago de fogo e de enxofre, onde já se achavam
a besta e o falso profeta" (v. 10, BJ).
A continuidade de Apocalipse 19 e 20 chega a ser até mais
evidente se se observar que a sequência na qual são julgados os inimigos de
Cristo acontece em uma ordem inversa à ordem em que aparecem pela primeira vez
no livro do Apocalipse. Em Apocalipse 12 foi primeiro mencionado o dragão,
depois vem a besta e o falso profeta no capítulo 13, e finalmente Babilónia no
capítulo 14. Seu destino final se descreve em uma sequência oposta: primeiro
vem a queda de Babilónia em Apocalipse 16 a 18; depois são destruídos a besta e
o falso profeta em Apocalipse 19, e finalmente, no 20, depois de mil anos, o
dragão é executado. Esta composição literária do surgimento e queda dos
principais inimigos de Cristo manifesta a ordem progressiva de Apocalipse 12 a
20 e sua unidade estrutural. Estes capítulos mostram um "desenvolvimento
magistral" de pensamento e de tema que avança firmemente para a
culminação, a consumação da guerra cósmica entre o céu e a terra. Dessa
maneira, a progressão avança da queda de Babilónia até o castigo dos agentes de
Satanás, e termina com a eliminação do pecado e do próprio Satanás.
A Sequência Cronológica
de Apocalipse 19 e 20
Evidentemente, os acontecimentos descritos em Apocalipse
19:11-20:10 seguem uma ordem cronológica. Isto está claro da sequência das
visões nas que as aves de rapina são convidadas a ir à grande ceia de Deus
(Apoc. 19:17, 18), seguida pela visão em que todas as aves "saciaram-se
das carnes deles" (vs. 19-21). Há uma notável progressão de eventos nestas
duas visões. A declaração de Apocalipse 20:10 proporciona a evidência direta da
ordem cronológica das visões de Apocalipse 19 e 20, quer dizer, "o diabo
que os enganava, foi arrojado no lago de fogo e enxofre, onde estavam a besta e
o falso profeta" (20:10). Esta última referência ao juízo da besta e de
seu profeta se descreve em 19:20 como acontecendo antes, na segunda vinda
(19:19).
Outra indicação de uma sequência cronológica é a observação
de que os eventos descritos em Apocalipse 19:11 a 20:6 são análogos à ordem dos
eventos em Daniel 7. Tanto em Daniel como no Apocalipse o anticristo é
consumido por meio de fogo quando o Messias vem em sua glória do céu (Dan.
7:11-14, 25; Apoc. 19:20). Em ambos os livros, imediatamente depois da
destruição do anticristo, o reino é dado aos santos (Dan. 7:22, 27; Apoc.
20:4-6).
Portanto, como o juízo do anticristo na segunda vinda ainda
está no futuro, o reino milenário dos santos que segue à destruição do
anticristo também deve ser futuro. Estamos de acordo com a conclusão do Jack S.
Deere: "Dessa maneira, sobre a base de Daniel 7, é mais natural ler
Apocalipse 20:4-6 como parte de uma progressão cronológica em seu contexto mais
amplo (19:11-20:15), do que como uma recapitulação".1 Inclusive o erudito
católico do Novo Testamento, Rudolf Schnackenburg reconheceu que "um salto
atrás ao tempo da parousia em Apocalipse 20:1-3 é altamente
inverossímil".2 Enquanto reconhecemos o papel geral da recapitulação na
estrutura do Apocalipse como um tudo, a seção de Apocalipse 19:11 a 20:15
apresenta claramente uma ordem lógica e cronológica.
Além disso, Ezequiel apresenta uma série consecutiva de
visões nas quais o reino messiânico (caps. 36 e 37) é seguido por uma guerra
encabeçada por Gogue de Magogue (caps. 38 e 39). Depois da guerra chega o reino
eterno centralizado em uma Nova Jerusalém (caps. 40-48). George Ladd concluiu dizendo
que "a profecia do Ezequiel tem a mesma estrutura básica que a de
Apocalipse 20".3 O erudito apocalíptico Jeffrey Vogelgesang declarou:
"João [em sua ordem de Apoc. 19:11 a 21:8] segue o modelo do Ezequiel 34 a
48".4 Isto significa que uma análise básica da ordem dos eventos futuros
tal como aparecem em Ezequiel (caps. 37-40) é essencial para um enfoque correto
de Apocalipse 19 a 21. Esta comparação é obrigatória se se reconhecer que
"João, o profeta cristão banido, modelou sua obra sobre o livro do Ezequiel,
o grande profeta do desterro babilônico".5 A estrutura paralela do
Apocalipse com Ezequiel levou a Vogelgesang à seguinte conclusão: "Esta é
uma prova conclusiva de que Daniel utilizou diretamente a Ezequiel".6
Em resumo, um estudo do milénio de Apocalipse 20 requer uma
análise não só de seu contexto imediato, mas também do amplo contexto dos
livros proféticos de Israel no Antigo Testamento. Desta dupla perspectiva, o
contexto imediato e o mais amplo, discernimos a intenção de João de colocar o
reino messiânico do milénio depois da segunda vinda de Cristo.
A Visão do Armagedom:
O Fim da Humanidade Pecadora
"Vi o céu aberto, e eis um cavalo branco. O seu
cavaleiro se chama Fiel e Verdadeiro e julga e peleja com justiça. Os seus
olhos são chama de fogo; na sua cabeça, há muitos diademas; tem um nome escrito
que ninguém conhece, senão ele mesmo. Está vestido com um manto tinto de
sangue, e o seu nome se chama o Verbo de Deus; e seguiam-no os exércitos que há
no céu, montando cavalos brancos, com vestiduras de linho finíssimo, branco e
puro. Sai da sua boca uma espada afiada, para com ela ferir as nações; e ele
mesmo as regerá com cetro de ferro e, pessoalmente, pisa o lagar do vinho do
furor da ira do Deus Todo-Poderoso. Tem no seu manto e na sua coxa um nome
inscrito: REI DOS REIS E SENHOR DOS SENHORES" (Apoc. 19:11-16).
Apocalipse 19 apresenta uma representação muito vívida da
vinda de Cristo e da batalha do Armagedom, antecipada brevemente em Apocalipse
16:13-16 e 17:12-14. Cristo é descrito como o Guerreiro vitorioso que desce do
céu sobre um cavalo de batalha dirigindo um exército imenso de anjos (Apoc.
19:11, 19; cf. Mat. 24:31; 25:31). Como o Messias-Rei (ver Apoc: 5:5), vem para
reclamar este planeta como seu domínio legítimo. Em sua cabeça há "muitos
diademas" (19:12). Nem o dragão com suas sete cabeças (12:3) nem a besta
com seus dez chifres (13:1) receberam a autoridade do Criador para reinar sobre
a humanidade. Cristo volta como o legítimo "Rei dos reis e Senhor dos
senhores" (19:16). Ele sozinho está autorizado pelo Pai a governar sobre a
terra. Ele sozinho executará a vontade de Deus porque é "o Verbo de
Deus" (v. 13), a manifestação da vontade de Deus para a humanidade. Em
quatro descrições simbólicas, todas tiradas dos profetas, Cristo é descrito
como o Rei-Juiz de toda a terra. A revelação de que o Senhor ressuscitado
executará as predições do juízo hebraico constitui uma mensagem assombrosa.
A. "Está vestido com um manto tinto de sangue"
(Apoc. 19:13).
B. "Sai da sua boca uma espada afiada, para com ela
ferir as nações" (Apoc. 19:15).
C. "Ele mesmo as regerá com cetro de ferro" (Apoc.
19:15).
D. "E, pessoalmente, pisa o lagar do vinho do furor da
ira do Deus Todo-Poderoso" (Apoc. 19:15).
Estas quatro descrições de juízo indicam como se levará a
cabo o fim da era da igreja a justiça retributiva de Deus, tal como aparece em
Isaías 11, 34, 63, Joel 3 e Salmo 2.7 João usa as metáforas dos profetas para
expressar o juízo de Deus sobre o Império Babilónico, um juízo que desdobra a
"ira de Deus" na segunda vinda. Apocalipse 19 enfatiza o fim de toda
a vida sobre o planeta.
"Então, vi um anjo posto em pé no sol, e clamou com
grande voz, falando a todas as aves que voam pelo meio do céu: Vinde, reuni-vos
para a grande ceia de Deus, para que comais carnes de reis, carnes de
comandantes, carnes de poderosos, carnes de cavalos e seus cavaleiros, carnes
de todos, quer livres, quer escravos, tanto pequenos como grandes" (Apoc.
19:17, 18).
O convite do céu às aves de rapina para assistir à grande
ceia de Deus está em contraste deliberado com o convite anterior:
"Bem-aventurados aqueles que são chamados à ceia das bodas do
Cordeiro!" (Apoc. 19:9). Evidentemente, Deus proporcionará ambos os
banquetes: um para Babilónia por ocasião do Armagedom, e outro para Israel no
monte Sião (18:4; 14:1). As ceias representam destinos opostos: o gozo mais
elevado do companheirismo com Cristo no céu e a angústia inexprimível da
separação total de Deus na terra. Esta divisão da humanidade em duas classes
foi apresentada durante o sexto selo (6:15-17; 7:1-7). Em outras palavras, Deus
proporcionará ou vida eterna ou morte eterna. A responsabilidade iniludível do
homem é escolher entre o Cordeiro e a besta, entre Cristo e o anticristo.
Qual é o significado de um anjo de Deus "posto em pé no
sol" convidando a todas as aves de rapina "que voam pelo meio do
céu" à ceia de Deus? Sugere uma proclamação universal tão importante como
a dos três anjos de Apocalipse 14:6-12 que também voam "pelo meio do
céu". Agora a convocação celestial se dirige a todos os que fizeram caso
omisso do rogo anterior de Apocalipse 14 e que rechaçaram o convite de Deus
para estar na caia de bodas do Cordeiro. Esta chamada ao Armagedom segue o
antigo estilo oriental de entrar em combate: "Vem a mim, e darei a tua
carne às aves do céu e às bestas-feras do campo (1 Sam. 17:44). Inclusive
Moisés advertiu ao Israel infiel: "O teu cadáver servirá de pasto a todas
as aves dos céus e aos animais da terra; e ninguém haverá que os espante"
(Deut. 28:26). Uma advertência similar se aplica a todos os que se aliam aos
poderes anticristãos.
Entretanto, a principal raiz hebraica da visão que João teve
do juízo de Cristo sobre o mundo apóstata, é a de Ezequiel 38 e 39. Este
profeta descreveu o assalto de Gogue e de seus aliados sobre o Israel de Deus
em seu solo pátrio no tempo do fim nas seguintes palavras:
"Virás, pois, do teu lugar, das bandas do Norte, tu e
muitos povos contigo, montados todos a cavalo, grande ajuntamento e exército
numeroso; e subirás contra o meu povo de Israel, como uma nuvem, para cobrir a
terra; no fim dos dias, sucederá que hei de trazer-te contra a minha terra,
para que as nações me conheçam a mim, quando eu me houver santificado em ti os
seus olhos, ó Gogue... Porque disse no meu zelo, no fogo do meu furor, que,
naquele dia, haverá grande tremor sobre a terra de Israel... Porque chamarei
contra Gogue a espada, sobre todos os meus montes, diz o Senhor JEOVÁ; a espada
de cada um se voltará contra seu irmão. E contenderei com ele por meio da peste
e do sangue; e uma chuva inundante, e grandes pedras de saraiva, fogo e enxofre
farei cair sobre ele, e sobre as suas tropas, e sobre os muitos povos que
estiverem com ele" (Ezeq. 38:15-22, RC).
"Nos montes de Israel, cairás, tu, e todas as tuas
tropas, e os povos que estão contigo; a toda espécie de aves de rapina e aos
animais do campo eu te darei, para que te devorem" (Ezeq. 39:4, RA).
"Tu, pois, ó filho do homem, assim diz o Senhor Jeová:
Dize às aves de toda espécie e a todos os animais do campo: Ajuntai-vos, e
vinde, vinde de toda parte para o meu sacrifício, que eu sacrifiquei por vós,
sacrifício grande nos montes de Israel, e comei carne, e bebei sangue...E vos
fartareis, à minha mesa, de cavalos, e de carros, e de valentes, e de todos os
homens de guerra, diz o Senhor Jeová" (Ezeq. 39:17-20, RC).
O Apocalipse de João estende agora a descrição dos mortos
pelo Messias além da lista de nações que aparecem em Ezequiel 39. No Armagedom,
os abutres se alimentarão com "carne de todos, livres e escravos, pequenos
e grandes" (Apoc. 19:18). João descreve a matança das multidões de Babilónia,
reunidas para fazer guerra contra Deus e seu Messias, como algo universal e
total. O mundo inteiro será um "monte de matança", um Har Magedon.8 O
Apocalipse intencionalmente aumenta o campo de batalha da predição de Ezequiel
a uma escala universal. Finalmente, "todas as pessoas" sobre a terra
estarão envoltas. Chama-se às aves "que voam pelo meio do céu" para
que se fartem da carne de todos os guerreiros que foram mortos, que lutaram
contra o Governante divino.
Muitos observaram que Apocalipse 19 não descreve uma batalha
real entre o céu e a terra. Como podem seres mortais oferecer resistência
contra o Guerreiro divino quando descer da parte oriental do céu? O Apocalipse
revela que quando se abrir o céu e a terra tremer por causa de um terremoto
universal, o temor paralisará a todo o mundo.
"Os reis da terra, os grandes, os comandantes, os
ricos, os poderosos e todo escravo e todo livre se esconderam nas cavernas e
nos penhascos dos montes e disseram aos montes e aos rochedos: Caí sobre nós e
escondei-nos da face daquele que se assenta no trono e da ira do Cordeiro,
porque chegou o grande Dia da ira deles; e quem é que pode suster-se?"
(Apoc. 6:15-17).
Sem dúvida a impressão é que não sobreviverá nenhum ser
humano rebelde naquele dia. João enfatiza em Apocalipse 19 que
"outros" foram mortos com a espada que saía da boca do que montava o
cavalo (v. 21). A profecia de Daniel da pedra que caiu do céu já expressa que o
reino messiânico esmiuçará a imagem metálica do mundo e converterá a todos os
habitantes em pó: "E o vento os levou, e deles não se viram mais
vestígios" (Dan. 2:35; também os vs. 44, 45).
A Unidade Maior de
Apocalipse 19-21
As palavras "Fiel e Verdadeiro" [pistós kay
alezinós] com respeito a Cristo (Apoc. 19:11), e ao que estava no trono no
capítulo 21:5, expressam a continuidade entre Apocalipse 19 e 21. Charles H.
Giblin observou três unidades correlacionadas dentro da narração de Apocalipse
19:11-21:8.9
A. A vitória do Rei de reis sobre a besta, o falso profeta e
os reis da terra (19:11 -21);
B. A vitória sobre Satanás na culminação do milénio
(20:1-10);
C. O juízo do trono, com a conquista da morte e o sepulcro e
o advento da Nova Jerusalém (20:11-21:8).
O centro focal destas divisões é (A) o Armagedom; (B) o
reino milenar; e (C) o juízo final em forma