“Então o rei Nabucodonozor mandou ajuntar os sátrapas, os prefeitos, os governadores, os conselheiros, os tesoureiros, os juízes, os magistrados, e todos os oficiais das províncias, para que viessem à dedicação da estátua que ele fizera levantar. Então se ajuntaram os sátrapas, os prefeitos, os governadores, os conselheiros, os tesoureiros, os juízes, os magistrados, e todos os oficiais das províncias, para a dedicação da estátua que o rei Nabucodonozor fizera levantar; e estavam todos em pé diante da imagem. Logo que ouvirdes o som da trombeta, da flauta, da harpa, da cítara, do saltério, da gaita de foles, e de toda a sorte de música, prostrar-vos-eis, e adorareis a imagem de ouro que o rei Nabucodonozor tem levantado. Portanto, no mesmo instante em que todos os povos ouviram o som da trombeta, da flauta, da harpa, da cítara, do saltério, e de toda a sorte de música, se prostraram todos os povos, nações e línguas, e adoraram a estátua de ouro que o rei Nabucodonozor tinha levantado. “ Daniel 3:2-3,5,7.
Este é um longo parágrafo, com um sentido satírico e cheio de repetições intencionais: o objectivo é realçar o carácter mecânico da adoração. A música joga um papel de grande importância, é notável o número de instrumentos musicais, “toda a sorte de música”, estão aqui para provocar um certo efeito. Três instrumentos de sopro em harmonia com três instrumentos de cordas, tudo com um sentido de organização para uma grande cerimónia.
Esta insistência que surge no texto sobre a minuciosa organização deixa perceber a falta de conteúdo espiritual, a cerimónia está centrada na forma e não no conteúdo, na aparência em vez da substancia, no ritual em vez do culto.
É uma cerimónia burocrática ou política, os que estão no poder estão mais preocupados com a estrutura, os regulamentos, com isso disfarçam a adoração e a fé genuína. O formalismo da religião de Babel procura substituir o vazio espiritual. Portanto, compreende-se a importância dada à música neste contexto. Pelo menos, a emoção produzida pelos instrumentos musicais provoca a ilusão do sentimento religioso.
Os sábios babilócos tinham a arte de manipular e impressionar os fiéis e exorcizar o divino, sabiam suscitar a experiência superficial e mística. Não é por acaso que a musica está tão associada ao uso das drogas e das práticas de mutilação destinadas a provocar o êxtase, sinal de união com um deus. Tudo se situa essencialmente no plano dos sentimentos e do sistema nervoso. O sucesso estava deste modo garantido, imediato e fácil.
Ainda hoje, e talvez mais que nunca graças à eficácia dos nossos “meios de comunicação”, podemos perceber a importância que a música tem sobre as massas. Multidões reúnem-se à volta de músicos e de cantores, que se tornaram os grandes sedutores e manipuladores do nosso tempo. Por um instante, não se pensa em nada, tudo é esquecido, tomados pelo encanto da música. As palavras e a inteligência da mensagem não são necessárias para convencer. O fenómeno é tão comum que invadiu as igrejas. Em reação à racionalidade cerebral dos cultos tradicionais, certos cultos chamados “celebrações” introduziram orquestras e, ao ritmo de instrumentos de “toda a sorte de música”, os fiéis são levados ao êxtase num frenético entusiasmo por vezes atingindo o delírio. Deixa-se de pensar, e as mensagens são reduzidas à mais simples expressão.
Este episódio do livro de Daniel coloca um aviso contra os extremismos, que consistem a viver a religião essencialmente como uma excitação do momento.
A emoção faz parte da experiencia religiosa, mas ela deve ser autêntica e profunda, conjugar-se com a inteligência e o pensamento. O ser na sua totalidade deve estar implicado na adoração, se não queremos correr o risco de nos encontrarmos no meio de uma multidão prostrada diante de qualquer ídolo. Da mesma maneira, na planície de Dura (Dan. 3:1), os pregadores de Babel não tiveram escrúpulos de usar toda a sorte de meios para provocar a “adoração”. A religião é aqui vivida no imediato. Esta dimensão toma nos nossos dias um cunho de grande actualidade.
“Logo que ouvirdes...prostrar-vos-eis, e adorareis” (v. 5). Tomados pela emoção provocada pela música e levados pelo movimento da multidão, caíram de joelhos sem pensar por simples reflexo.
O fogo está aceso, não muito longe, como uma ameaça imediata. Este costume que consistia a lançar ao fogo os recalcitrantes era muito antigo e frequente no Médio Oriente. Confirmado em Larsa, no sul de Babilónia, desde o século XVII a.C., era uma pena prevista pelo código de Hamurabi (25 e 110 O Código de Hamurabi (foto) é um dos mais antigos conjuntos de leis escritas já encontrados, e um dos exemplos mais bem preservados deste tipo de documento da antiga Mesopotâmia. Segundo os cálculos, estima-se que tenha sido elaborado pelo rei Hamurabi por volta de 1700 a.C.. Foi encontrado por uma expedição francesa em 1901 na região da antiga Mesopotâmia correspondente a cidade de Susa, atual Irã. http://pt.wikipedia.org/wiki/Código_de_Hamurabi). Alguns anos antes, dois falsos profetas, Zedequias e Acabe, tinham sofrido a mesma condenação por ordem de Nabucodozor. Esta morte pelo fogo tinha de tal modo marcado os espíritos dos israelitas que Jeremias fez a seguinte formulação sobre esta maldição (Jeremias 29:21,22).
Este tipo de fornalhas fazia parte integrante da paisagem da região, elas serviam também ao fabrico de tijolos. As descobertas arqueológicas revelaram vários destes fornos nos arredores de Babilónia. De resto, a construção da Torre de Babel está indirectamente associada a este fogo (Génesis 11:3). É muito razoável pensar que um destes fornos estaria perto da estátua de ouro. Segundo Diodoro da Sicília, os Cartagineses tinham levantado uma estátua em bronze ao seu deus sobre um forno subterrâneo e no qual eram lançadas crianças vivas.
Ou seja, para o povo era algo de normal, tal como o era a sentença imediata para quem não obedecesse. Esta dimensão está presente e é revelada: “E qualquer que não se prostrar e não a adorar, será na mesma hora lançado dentro duma fornalha de fogo ardente.” (Daniel 3:6). Aterrados pela ameaça tão próxima da fornalha, havia um e só pensamento no momento, e por instinto de conservação obedecia-se.
Intolerante e violenta, totalitária e mecânica, a religião de Babel é essencialmente uma religião do presente. Em todo o caso, é uma religião eficaz, porque todos agem como previsto. O programa funciona perfeitamente. Todos, excepto alguns. Assim funcionou naquele tempo de Daniel, assim funcionou durante a Idade Escura, assim voltará a funcionar.
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